Insegurança Jurídica quanto à Formalização dos Instrumentos de Cessão Fiduciária de Direitos Creditórios
O Superior Tribunal de Justiça enfrentou, ao longo dos anos, relevantes debates acerca da validade e eficácia da garantia por cessão fiduciária de direitos creditórios no âmbito de operações bancárias.
Dentre os temas enfrentados, estão (i) a concursalidade do crédito garantido por cessão fiduciária de direitos creditórios na Recuperação Judicial, (ii) a necessidade do prévio registro do instrumento de tal garantia no registro de títulos e documentos do domicílio do devedor e (iii) a necessidade de individualização dos créditos do devedor que serão objeto da garantia.
Em relação aos dois primeiros itens, o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) concluiu que há extraconcursalidade dos créditos garantidos por cessão fiduciária de direitos creditórios na Recuperação Judicial, eis que eles não podem ser considerados como “bens de capital” (Art. 49, § 3º, da Lei 11.101/05)¹. Ademais, é desnecessário o registro de tal garantia em cartório para que ela surta efeitos perante os contratantes, e, portanto, seja considerado um crédito extraconcursal².
No que tange à necessidade ou não de especificação/individualização dos recebíveis sobre os quais recai a garantia, alguns Tribunais de Justiça Estaduais entendiam que tal questão estava superada em razão do posicionamento do STJ no Recurso Especial 1.559.457/MT, no qual esta Corte havia, em tese, afastado a necessidade de tal especificação e individualização dos créditos para a validade e existência da garantia.
Ante este posicionamento, o Tribunal de Justiça de São Paulo, em diversas situações³, seguiu a orientação do STJ no sentido de que “a especificação dos recebíveis sobre os quais a garantia recai, não são [é] requisitos de existência, de validade ou mesmo de eficácia do ajuste entre os contratantes”, o que trazia segurança jurídica às instituições financeiras, uma vez que detinham a certeza de que, para a formalização da garantia, era necessário apenas a identificação/determinação dos créditos que seriam cedidos e, não, de seus títulos representativos.
No entanto, em junho de 2017, o STJ4 declarou que a questão a respeito da necessidade de haver detalhamento/individualização dos créditos que seriam objeto da cessão fiduciária ainda não havia sido pacificado pela corte, o que ensejou na mudança de posicionamento do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Para o Tribunal de Justiça Paulista5, faz-se “necessária a individualização das garantias”, sendo “indispensável o detalhamento dos créditos objeto dessas garantias nos respectivos instrumentos contratuais”, de modo a possibilitar a sua exclusão da Recuperação Judicial.
Esse entendimento está consubstanciado nos arts. 1.362, IV, do Código Civil, 27 e 33 da Lei 10.931/04 e 18, IV, da lei 9.514/97, que, no entender do Tribunal de Justiça Paulista, estabelecem, expressamente, a necessidade de especialização/individualização dos créditos a serem cedidos fiduciariamente, especificamente no que tange à discriminação do título representativo do crédito, a fim de possibilitar a identificação do objeto da garantia.
Além disso, ante à tese primordial de ser inviável identificar todos os objetos/recebíveis futuros da garantia fiduciária, entendeu o Tribunal de Justiça Paulista que é possível “a especificação de elementos mínimos de identificação, (…) ao menos quanto ao tipo e origem dos ativos”, não bastando “o instrumento simplesmente dizer que seriam objeto de cessão fiduciária quaisquer créditos realizados pelo cedente ou terceiros em conta vinculada”6.
Tal entendimento, inclusive, vem sendo reiterado pela Corte Paulista7, de modo que os créditos garantidos por cessões fiduciárias de recebíveis não individualizados devem integrar a Recuperação Judicial, o que traz prejuízos às instituições financeiras que, ao analisarem os riscos e optarem pela liberação do crédito, consideraram que ele estava resguardado por uma garantia forte e extraconcursal.
Ocorre, no entanto, que, ao contrário do quanto consignado nos recentíssimos julgados do TJSP, o Superior Tribunal de Justiça já se posicionou no sentido de ser desnecessária a individualização dos títulos que representam os créditos que serão objeto da cessão fiduciária, até porque não há previsão legal para tanto e se afigura “absolutamente possível que o título representativo do crédito cedido não tenha sido nem sequer emitido, a inviabilizar, desde logo, sua determinação no contrato”8, até porque “o objeto da cessão fiduciária são os direitos creditórios que hão de estar devidamente especificados no instrumento contratual, e não o título, o qual apenas os representa”.
Nesse sentido, entendeu o Min. Marco Aurélio Bellizze que, “em atenção à própria natureza do direito creditício sobre o qual recaia a garantia fiduciária – bem incorpóreo e fungível, por excelência -, sua identificação no respectivo contrato, naturalmente, referir-se-á à mensuração do valor constante da conta vinculada ou dos recebíveis, cedidos em garantia ao débito proveniente do mútuo bancário e representados por títulos de crédito”.
Portanto, é válida e eficaz a cessão fiduciária que, nos termos do art. 104, II, do Código Civil, ao menos determinar os créditos futuros do devedor, não sendo requisito a individualização/especialização dos títulos representativos de tais créditos, o que, aliás, seria inviável à instituição financeira fazê-lo.
Dito isso, e diante das decisões do Tribunal de Justiça Paulista no sentido contrário ao entendimento do STJ; os credores que detiverem crédito garantido por cessão fiduciária devem se atentar aos entendimentos de cada Tribunal de Justiça Estadual para, então, identificar a localidade que trará maior segurança à garantia e sopesar a necessidade de estipular cláusula de eleição de foro, de modo a evitar que, em um eventual cenário litigioso, seja proferida decisão que torne a garantia, de certa forma, ineficaz, já que há riscos de ser determinada a liberação dos direitos creditórios.
1 STJ; Resp. 1263500/ES; Quarta Turma; Rel. Maria Isabel Gallotti; j. 5.2.2013.
2 STJ; Resp. 1412529/SP; Terceira Turma; Rel. Marco Aurélio Bellizze; j. 17.12.2015.
3 TJSP; AI nº 2251736-83.2016.8.26.0000, 2ª Câmara de Reservada de Direito Empresarial; Rel. Carlos Alberto Garbi; j. 3.7.2017. TJSP; AI nº 2202626-18.2016.8.26.0000; j. 27.11.2017. AI nº 2231516-64.2016.8.26.0000. AI nº 2030511-54.2017.8.26.0000.
4 STJ; AgInt no Pedido de Tutela Provisória 434/SP; Rel. Min. Nancy Andrighi; Terceira Turma; j. 6.6.2017.
5 TJSP; AI nº 2195194-11.2017.8.26.0000; Rel. Claudio Godoy; 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; j. 10.4.2018.
6 TJSP; AI nº 2227540-20.2014.8.26.0000; 1ªCâmara Reservada de Direito Empresarial; Rel. Claudio Godoy; j. 24.6.2015.
7 TJSP; AI nº 2202122-41.2018.8.26.0000; Rel. Ricardo Negrão; 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; j. 25.4.2019). TJSP; AI nº 2052230-58.2018.8.26.0000; Rel. Araldo Telles; 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; j. 8.4.2019. TJSP; AI nº 2177377-94.2018.8.26.0000; Rel. Ricardo Negrão; 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; j. 8.4.2019;
8 STJ; Resp nº 1.797.196/SP; Terceira Turma; Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze; j. 9.4.2019.