A (Triste) Controvérsia sobre a Dispensa Coletiva
Imagine a seguinte situação: em meio a pandemia sem precedentes na história recente mundial, uma empresa, em grave situação financeira e utilizando-se da legislação em vigor, decide demitir a maior parte dos seus empregados com o pagamento de todas as verbas rescisórias, em plena observância à legislação vigente.
Imagine, também, que após o pagamento das verbas rescisórias destes empregados, o empregador seja surpreendido pela notificação do Ministério Público do Trabalho ou de uma ação perante a Justiça do Trabalho, por meio da qual seja questionado sobre ausência de negociação sindical nas respectivas demissões, mesmo que exista no ordenamento jurídico vigente a sua expressa dispensa.
Essa discussão é bastante atual no direito brasileiro. A possibilidade de dispensa coletiva sem a prévia negociação com o sindicato da categoria tem gerado discussão não só perante a Justiça do Trabalho, como também perante o Ministério Público do Trabalho, na medida em que muitos procuradores e juízes do trabalho têm entendido que a norma é inconstitucional, pois viola os princípios da proteção ao emprego, bem como da dignidade da pessoa humana. Outros, no entanto, seguem o princípio da legalidade e entendem que a lei autoriza a dispensa coletiva, sem a prévia negociação sindical.
Para entender, de forma histórica, a controvérsia que foi criada acerca do tema, faz-se necessário relembrar que o fundamento para a necessidade de prévia negociação sindical foi determinado pela Convenção nº 158 da Organização Internacional do Trabalho, por meio da qual os países signatários se comprometeram a consultar, de forma prévia, a entidade sindical quando houvesse dispensas fundadas em motivos econômicos, tecnológicos, estruturais ou análogos.
Ocorre que, a partir de 20 de novembro de 1997, a Convenção nº 158 foi denunciada por nota do então governo brasileiro à Organização Internacional do Trabalho, sendo que ainda hoje se discute se tal denúncia seria ou não constitucional, assunto que está pendente de julgamento perante o Supremo Tribunal Federal[1].
Desde então, o tema está longe de ser pacificado pela jurisprudência, eis que existem julgados que entendem pela obrigatoriedade da prévia negociação com o sindicato para que dispensa coletiva tenha eficácia, mesmo sem a regulamentação legal sobre o assunto. Sobre este aspecto, vale destacar o julgamento proferido pelo Tribunal Superior do Trabalho sobre o emblemático caso da Embraer[2] em 2009, por meio do qual entendeu pela necessidade de prévia consulta ao ente sindical antes da dispensa coletiva realizada.
Em abril do corrente ano, a segunda turma do Tribunal Superior do Trabalho entendeu que a dispensa de noventa por cento do quadro docente de uma instituição de ensino configurou dispensa ilegal, tendo em vista a ausência de prévia negociação sindical para tanto. Com a decisão, o processo[3] foi remetido ao Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região para julgamento dos danos morais coletivos e danos morais individuais cabíveis a cada um dos empregados demitidos.
Por outro lado, a questão, aparentemente, teria sido resolvida com a entrada em vigor da Lei 13.467/2017, conhecida como “Reforma Trabalhista”, uma vez que a nova legislação [4] equiparou todas as formas dispensas, sejam elas individuais, plúrimas ou coletivas, de forma que dispensou a necessidade de prévia negociação para que as rescisões tivessem validade.
Entretanto, já em meio ao contexto da pandemia do coronavírus, foram proferidas recentes decisões na Justiça do Trabalho que reafirmaram a necessidade de negociação sindical prévia à dispensa coletiva. Cite-se como casos emblemáticos a dispensa coletiva feita pela Ford e pela Fogo de Chão, os quais seguem em julgamento, por meio de recursos apresentados aos respectivos Tribunais. Os fundamentos utilizados nestas decisões giram em torno da proteção constitucional do empregado, um positivismo judicial, bem como da função social da empresa, busca pelo pleno emprego e, por fim, da valorização do trabalho humano.
Embora o direito brasileiro apresente mecanismos para que a norma seja considerada inconstitucional – cite-se, o controle concentrado e difuso de controle de constitucionalidade – não há, até o presente momento qualquer determinação, pelo Supremo Tribunal Federal, de efeito suspensivo quanto à aplicação do artigo 477-A da Consolidação das Leis do Trabalho, o que, do ponto de vista do princípio da legalidade enseja na eficácia da norma jurídica.
Nesta toada, sobre o fato da utilização de princípios para expurgar a aplicação da norma, importante frisar que desde a entrada em vigor da Reforma Trabalhista, a dispensa coletiva sem a prévia negociação com o ente sindical foi expressamente resolvida, de modo que não há que se falar em lacuna normativa, o que possibilitaria a aplicação dos princípios gerais do direito que autorizariam interpretação diversa daquela disposta no artigo 477-A da Consolidação das Leis do Trabalho.
Em um estado democrático de direito, o princípio da legalidade está intimamente relacionado ao princípio da segurança jurídica, sendo certo que quando existe norma jurídica que autoriza o empregador a demitir os seus empregados sem justa causa e sem a negociação prévia com o sindicato, tal deve ser respeitado, eis que não pode o direito servir de palanque para posteriores surpresas, como ocorreu nos casos supracitados.
Ainda que o fatídico artigo 477-A da Consolidação da Lei do Trabalho tenha sido objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Superior Tribunal Federal, ação essa que está pendente de julgamento em razão do pedido de vista do Ministro Dias Toffoli, até o momento o presente artigo permanece vigente na legislação brasileira, de modo, juridicamente, não pode haver qualquer óbice para a sua aplicação.
Diante das incertezas jurídicas acerca do tema, recomenda-se cautela quando da dispensa coletiva, especialmente em tempos de pandemia, sendo necessária a análise e indicação do risco no afastamento da prévia negociação com o sindicato da categoria, especialmente porque o tema (e a sua inconstitucionalidade) vem sendo julgado pelo Supremo Tribunal Federal, como acima mencionado.
[1] Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.625-3
[2] Agravo de Instrumento em Recurso de Revista nº 2236-95.2011.5.05.0511
[3] Recurso de Revista nº RR-201-32.2013.5.24.0005
[4] Artigo 477-A da Consolidação das Leis do Trabalho: As dispensas imotivadas individuais, plúrimas ou coletivas equiparam-se para todos os fins, não havendo necessidade de autorização prévia de entidade sindical ou de celebração de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho para sua efetivação.