Vale atrair o parceiro da concorrente em qualquer circunstância?
A teoria do terceiro cúmplice está relacionada à concepção de que, independentemente da autonomia da vontade e do direito à livre atividade econômica, um terceiro alheio à uma determinada relação contratual e conhecedor das obrigações estabelecidas entre as partes, não pode deliberadamente interferir em tal relação.
Pautada nos princípios da boa-fé e da função social do contrato, a teoria do terceiro cúmplice tem por finalidade tanto abster terceiros de induzir qualquer parte de um contrato a romper seus compromissos, quanto preservar os direitos estabelecidos na contratação.
Verifica-se a incidência expressa da doutrina do terceiro cúmplice no artigo 608 do Código Civil, que traz a noção de que é essencial a constatação de plena ciência por parte do terceiro, ou a possibilidade de que este a possuísse, mediante o mínimo de discernimento e diligência, de que a sua ação irá conduzir uma pessoa que esteja obrigada por contrato a inadimplir sua obrigação principal, para que seja considerado cúmplice.
Ao terceiro cúmplice pode ser atribuída a responsabilidade extracontratual, também denominada responsabilidade aquiliana, na medida em que, ao descumprir um dever legal, ético e moral, violando direito de terceiro e lhe causando danos, comete ato ilícito, conforme tipificado no artigo 186 do Código Civil.
Ainda que o terceiro (cúmplice) venha a arguir que agiu licitamente, há que se lembrar que o próprio exercício de um direito também está adstrito aos seus limites, com base nos princípios corolários da relação contratual acima abordados, bem como no abuso de direito, expresso no artigo 187 do Código Civil.
Fato é que o terceiro cúmplice, conhecedor das obrigações estabelecidas entre terceiros, além cometer um ato ilícito, ainda que por omissão, negligência ou imprudência, também infringe deveres de conduta decorrentes dos princípios da boa-fé e função social do contrato.
A compreensão destes dois princípios contratuais e o entendimento de sua relevância irrompida nos últimos tempos são essenciais para o debate da teoria do terceiro cúmplice, pois implica o reconhecimento dos limites que o ordenamento jurídico estabelece para o exercício das faculdades subjetivas que possam caracterizar abuso de direito.
Seja por dever extracontratual, seja por decorrência de abuso de direito, ao terceiro cúmplice não é facultado declinar da sua responsabilidade civil, que lhe imputa a obrigação de observar o respeito à pessoa, direitos e patrimônio de terceiros, devendo reparar os danos aos quais der causa.
Em julgados proferidos por nossos tribunais, os negócios jurídicos são invalidados nos casos de violação da função social e à boa-fé e consequentes prejuízos para outras relações contratuais, mesmo que alheias ao negócio contratado.
Como exemplo, temos a invalidade de venda e compra de imóvel, quando o adquirente sabia da existência anterior de promessa de compra e venda do respectivo imóvel, de modo que sua conduta tenha violado os deveres anexos de cooperação e de lealdade, tendo ele atuado como um “terceirocúmplice” no inadimplemento das obrigações assumidas pela parte em comum às duas relações.
Em outro caso, envolvendo distribuidora de combustível, também foi suscitada a teoria do terceiro cumplice e a aplicação do artigo 608 do Código Civil, sob o argumento de que a distribuidora teria violado o princípio da função social do contrato e praticado abuso de direito, ao contratar com posto de gasolina que, sabidamente, ostentava, em caráter de exclusividade, a marca de uma outra distribuidora. Foi atribuída à infratora a responsabilização extracontratual, sendo condenada ao desfazimento do acordo, pagamento dos danos materiais, morais e lucros cessantes.
Vale citar, também, um caso emblemático envolvendo cantor famoso e duas grandes marcas de cerveja concorrentes no mercado nacional, em que uma delas cooptou o referido artista, à época garoto propaganda da outra, tendo o convencido a romper seu contrato, o qual, inclusive, era dotado de caráter de exclusividade, e tornar-se seu garoto propaganda. Com fundamentação na função social do Contrato (e também na seara da concorrência desleal, prevista pela Lei nº 9.279/96), foi reconhecida a intenção de promover a marca de cerveja ré em detrimento da imagem da cerveja fabricada pela autora, mediante propaganda comparativa e aviltante, em tom de deboche, e concluiu-se pela caracterização de conduta desleal, cabendo à ré imputação por responsabilidade aquiliana e condenação ao pagamento de indenização por danos materiais, morais e à imagem, porquanto presentes os requisitos caracterizadores, ato, dano e nexo de causalidade entre a conduta e o dano.
O contrato deve ter função útil à sociedade ou às partes nele envolvidas, sendo legítimo que as partes contratantes tenham a expectativa de que terceiros não prejudiquem sua relação contratual e que, se o fizerem, no mínimo arquem com os danos que conscientemente deram causa.
Dessa forma, ao prospectar prestadores de serviços, distribuidores, representantes comerciais ou qualquer terceiro que, reconhecidamente, mantém vínculo contratual com outra parte ou concorrentes, as empresas devem refletir quais são as implicações decorrentes do rompimento dos contratos em questão, de forma a estimar os riscos e reparações envolvidos na sua empreitada.