A Viabilidade da Assinatura Eletrônica diante da Pandemia
O mundo corporativo vive em constante transformação, tornando-se cada vez mais tecnológico e automatizado, e a pandemia gerada pela COVID-19 houve por acelerar ainda mais este processo, já que, com as imposições de isolamento social, muitas empresas foram obrigadas a adaptar seus fluxos e procedimentos para serem realizados de forma remota.
Neste contexto, muitas empresas tiveram também que adaptar a forma que formalizam seus negócios e parcerias, tornando-se cada vez mais uma realidade mundial a utilização de plataformas de assinatura de contratos por meio eletrônico.
Embora algumas empresas já tenham adotado o uso dessas ferramentas mesmo anteriormente à pandemia, seja por redução de custos, ganho de tempo, diminuição de burocracia, dentre outros fatores, outras ainda têm suas dúvidas em relação à validade da formalização e celebração de documentos em formato eletrônico no cenário brasileiro.
Inicialmente, vale destacar que no ordenamento jurídico brasileiro prevalece o princípio da liberdade da forma[1], ou seja, se a lei não apresentar regras específicas para a validade de determinado documento, seja requerendo forma especial, reconhecimento de firma da assinatura ou registro em cartório, desde que garantida a sua integridade (veracidade do conteúdo) e autenticidade (certeza de autoria), ele será tido como válido, independentemente da metodologia utilizada para assiná-lo.
Diante disso, a fim de regulamentar a assinatura no meio eletrônico no Brasil, foi aprovada a Medida Provisória nº 2.200-2/2002 (“MP 2.200-2/02”), cuja finalidade é a instituição da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – “ICP-Brasil”, para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica. Em seu artigo 10, §1º[2], a MP 2.200-2/02 dispõe que qualquer documento em forma eletrônica em que tenha sido utilizado o processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil presume-se verdadeiro em relação aos signatários. O parágrafo seguinte[3] permite ainda a utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento.
A equiparação do valor probatório de documentos digitalizados a documentos originais também é admitida pelo artigo 10 da conhecida “Lei da Liberdade Econômica”, nº 13.874/2019.[4]
Outro não é o entendimento da jurisprudência brasileira, que tem reconhecido de forma pacífica a validade da assinatura digital ou eletrônica como uma forma segura de identificação do signatário do documento eletrônico e confirmação de sua integridade[5].
Analisando a legislação acima em comento é possível apontar a diferença entre assinatura digital, assinatura eletrônica e assinatura digitalizada.
Assinatura digital, prevista no art.10, §1º da MP 2.200-2/02, é a assinatura eletrônica que se utiliza de uma certificação digital disponibilizada pelo ICP-Brasil, sendo, inclusive, equiparada à assinatura com reconhecimento de firma por tabelião, nos termos do art. 411 do Código de Processo Civil[6].
Já a assinatura eletrônica que não conta com a validação por uma autoridade certificadora, tem sua validade atestada por meio de ferramenta tecnológica, equipada com login e senha, apta a comprovar o conjunto de informações que a torna segura, quais sejam, o desenho da assinatura manuscrita, a geolocalização, o endereço do computador na internet, criptografia, dentre outros, possibilitando a certeza da autoria e integridade do documento.
Por fim, a assinatura digitalizada nada mais é do que a mera digitalização da imagem da assinatura feita a próprio punho, sendo de fácil reprodução, de modo que seu valor jurídico pode ser facilmente contestado, já que não é possível comprovar de forma segura a autenticidade e integridade do documento. Vale destacar a ressalva de que a própria assinatura digitalizada também pode vir a ser aceita juridicamente, desde que passe por um processo de digitalização que empregue o uso da ICP – Brasil[7].
Cumpre esclarecer algumas outras dúvidas que também possam pairar, como a hipótese em que uma das partes da contratação possua certificado digital a viabilizar a assinatura digital e a outra possua sistema de assinatura eletrônica. Nesta situação, não há qualquer impedimento para que cada qual assine o contrato da forma que lhe convier, desde que o documento seja mantido de forma eletrônica.
Por outro lado, um documento assinado por uma das partes de forma eletrônica, seja por certificado digital ou assinatura eletrônica, e, após, impresso e assinado a próprio punho pela outra parte, não terá a mesma força legal.
Isto porque uma vez que o documento é impresso, os elementos de segurança tecnológica que garantem a sua autenticidade e integridade não poderão ser atestados futuramente no papel, sendo essencial o uso das ferramentas tecnológicas específicas para atestar sua veracidade. Importante clarificar que o documento em papel será uma cópia de um documento original, que, se mantido também eletronicamente, devidamente assinado através da ferramenta apropriada, manter-se-á válido[8].
Com relação à hipótese inversa, sendo um documento assinado à mão por uma das partes e depois digitalizado, para que a outra parte o assine de forma eletrônica, a mesma explicação já exposta acima deve ser reiterada, a mera digitalização da imagem da assinatura não comprova de forma segura sua autenticidade e integridade, mas pode ser aceita juridicamente se passar por processo que empregue o uso da ICP – Brasil, não sendo recomendado, de qualquer forma, o descarte do documento original manuscrito.
Outra questão a ser abordada refere-se à executividade do contrato eletrônico. Diante de tudo acima exposto, temos que assinaturas eletrônicas ou digitais atribuem ao documento presunção de validade e veracidade. Porém, nossos tribunais mantêm ainda hoje, majoritariamente, o entendimento tradicional de que, embora válido, o contrato somente produzirá a eficácia de um título executivo extrajudicial se assinado também por duas testemunhas, em observância à taxatividade do rol trazido pelo artigo 784, III, do Código de Processo Civil. Desta forma, seria necessário que não somente as partes dispusessem de ferramentas adequadas à assinatura eletrônica ou digital do contrato, mas também suas testemunhas, garantindo, assim, a possibilidade de utilizá-lo como um título executivo extrajudicial.
No entanto, o Superior Tribunal de Justiça abriu importante precedente ao decidir, por maioria de votos, que o contrato eletrônico, em face de suas particularidades, tendo em conta a sua celebração à distância e eletronicamente, mesmo que não contenha a indicação de testemunhas, pode manter a sua característica de executividade, quando a existência e a higidez do negócio puderem ser verificadas de outras formas, em face destes novos instrumentos de verificação de autenticidade e presencialidade do contratante, que não mediante testemunhas[9]. A propósito, diversos doutrinadores e magistrados têm se inclinado na mesma linha do julgado em comento e tecido críticas de que o legislador não alcançou o êxito esperado por muitos juristas com relação ao avanço tecnológico no Código de Processo Civil de 2015. Porém, este ainda nos parece um assunto para delongadas discussões.
Há também outras formas válidas de contratação no mundo tecnológico, como as manifestações de vontade através da seleção de caixa verificadora, ou check box, conhecido também como “opt in”, para a adesão e/ou concordância a termos e condições gerais que regem a contratação de bens e serviços no e-commerce. Este tipo de acordo é convalidado pelo artigo 434 do Código Civil[10], e ratificado pelo Enunciado 173 da III Jornada de Direito Civil. Há, entretanto, que se observar os requisitos básicos de sua validade, a saber, a comprovação da liberalidade da declaração quanto ao objeto de contratação, objeto lícito e agentes capazes, bem como que não exista na lei previsão de forma compulsória para a sua formalização, nos termos do já citado artigo 107 do Código Civil. É necessária também a possibilidade de comprovação, por meio de ferramentas tecnológicas adequadas, da autoria da manifestação, e, ainda, garantir os direitos do declarante previstos no artigo 7º, inciso VI, do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014)[11]. Por fim, mister ressaltar a sujeição destas contratações ao direito consumerista, quando o caso. Observados estes requisitos, é possível afirmar a validade jurídica destas contratações, em que pese, novamente, não ser possível lhes auferir eficácia como título executivo extrajudicial, pelos mesmos motivos acima expostos.
Fato é que, se na teoria, em consonância com todos os argumentos acima e atendidos todos requisitos de integridade e autenticidade, a contratação eletrônica corresponde a negócio jurídico válido e eficaz, na prática, assim como a assinatura manual, a assinatura em meio eletrônico não está totalmente isenta da atuação de fraudadores, de modo que os usuários destes sistemas devem sempre se atentar às orientações de segurança inerentes a tais ferramentas, como guardar e proteger seus logins, senhas e certificados digitais, não autorizando-os ou confiando-os ao uso de terceiros, quem quer que sejam.
Certamente, a assinatura eletrônica tende a se tornar a realidade nas contratações em substituições aos meios físicos convencionais, não somente diante dos imperativos que o mundo vem enfrentando face ao atual cenário de pandemia, mas pelo ditame do natural e inevitável avanço tecnológico da própria sociedade como um todo.
[1] Código Civil: Art. 107 A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.
[2] MP nº 2.200-2: Art. 10 (…) 1º As declarações constantes dos documentos em forma eletrônica produzidos com a utilização de processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil presumem-se verdadeiros em relação aos signatários, na forma do art. 131 da Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916 – Código Civil.
[3] MP nº 2.200-2: Art, 10 (…) 2º O disposto nesta Medida Provisória não obsta a utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento.
[4] Lei da Liberdade Econômica nº 13.874/2019: Art. 10. A Lei nº 12.682, de 9 de julho de 2012, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 2º-A: 2º O documento digital e a sua reprodução, em qualquer meio, realizada de acordo com o disposto nesta Lei e na legislação específica, terão o mesmo valor probatório do documento original, para todos os fins de direito, inclusive para atender ao poder fiscalizatório do Estado.
[5] APC: 20140111450486, Relator: MARIA IVATÔNIA, 5ª Turma Cível, Data de Julgamento: 04/11/2015, 5ª Turma Cível, DJE: 11/11/2015; AgRg no AREsp 1404523/SP, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, Data de Julgamento: 17/10/2019, DJe 25/10/2019
[6] Código de Processo Civil: Art. 411. Considera-se autêntico o documento quando: (…) II – a autoria estiver identificada por qualquer outro meio legal de certificação, inclusive eletrônico, nos termos da lei;
[7] Lei 13.874/2019: Art. 18 (…) II – independentemente de aceitação, o processo de digitalização que empregar o uso da certificação no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) terá garantia de integralidade, autenticidade e confidencialidade para documentos públicos e privados.
[8] Disponível emhttps://www.anoreg.org.br/site/2019/11/21/irtdpj-brasil-consultoria-irtdpjbrasil-ementa-rcpj-alteracao-contratual-assinatura-digital/.
[9] STJ – Resp: 1495920 DF 2014/0295300-9, Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Data de Julgamento: 15/05/2018, T3 – Terceira Turma, Data de Publicação: DJe 07/06/2018
[10] Código Civil: Art. 434. Os contratos entre ausentes tornam-se perfeitos desde que a aceitação é expedida, exceto: I – no caso do artigo antecedente; II – se o proponente se houver comprometido a esperar resposta; III – se ela não chegar no prazo convencionado.
[11] Marco Civil da Internet: Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos: (…) VI – informações claras e completas constantes dos contratos de prestação de serviços, com detalhamento sobre o regime de proteção aos registros de conexão e aos registros de acesso a aplicações de internet, bem como sobre práticas de gerenciamento da rede que possam afetar sua qualidade.